sábado, 9 de outubro de 2021

"Há sempre uma dor qualquer, não é?"

Não houve qualquer hesitação, nem tola foi a decisão ao reservar dois bilhetes para a peça Há sempre uma dor qualquer, não é?, escrita pelo Paulo Kellerman, produzida pelo grupo de teatro O Alguidar e encenação a cargo de Rita Rosa. A aquisição do bilhete possibilitava a compra do livro, contendo a peça original e as fotografias dos ensaios, captadas pelo Licínio Florêncio, fotógrafo de Leiria.
Não conhecia pessoalmente a Rita, mas passei a acompanhar com interesse a diversidade de trabalho realizado por este grupo de teatro e os eventos em que iam participando ao longo dos últimos meses.

A estreia da peça, agendada para 8 de Outubro, pelas 21h30, e morando a uma distância razoável, levou-me a percorrer uns bons quilómetros até ao Auditório da Junta de Freguesia de São de Mamede, em Leiria, na companhia da Anabela Gonçalves, amiga de longa data e, quase, quase, habituada a estas minhas ideias.

À chegada, fomos bem acolhidas pela simpatia de quem procedia à confirmação dos bilhetes e à entrega do livro, o qual me encantou no imediato pela sobriedade, discrição e beleza humana das fotografias nele contidas, em momentânea antecipação visual do que nos esperava.
Enquanto aguardávamos, as conversas decorriam soltas e animadas, colmatadas pelo imenso riso provocado pela aparição de um cão preto com uma coleira-lanterna-de-mineiro. Sim, imaginar esta cena em uma zona escura, logo o terror seria presença.
A sala do auditório foi aberta e os lugares totalmente ocupados. Aguardava-se com expectativa.

Neste curto intervalo de espera, dei por mim a pensar que desde o surgimento da ideia, passando pela criação das possibilidades, ensaios, até chegar à sua materialização com a apresentação pública em três sessões esgotadas, houve certamente muita entrega, discussão de ideias, alterações e altercações, gargalhadas, partilha, frustração, sorrisos, vontades e pensamentos negativos (Que faço aqui? Estou cansado! Hoje não sou capaz. Não me apetece… [eu teria pensado assim algumas vezes!]) tudo enlaçado com a vivência diária de cada uma das pessoas que integram este projecto.
Os meus pensamentos foram interrompidos com as luzes apagadas e a voz off elencando as recomendações habituais (Chiça! Eu já tinha prevaricado ao ter fotografado o palco de cortinas fechadas).

Com o cenário iluminado, foi dado azo para que cada uma das personagens assumisse de forma apelativa a sua postura, o seu diálogo, o seu medo (porque certamente o interior estremecia), a representação do seu papel, decorado, repetido vezes sem fim nas longas noites de ensaios.
Eu, mera espectadora atenta a tudo quanto me rodeava, assistia e sentia o que decorria no palco, e ri até às lágrimas, coloquei as mãos na nuca das vezes que parei de rir por um pensamento mais profundo, chorei emocionada.

Independentemente dos estereótipos representados, os preconceitos sociais assinalados, as cenas e situações que nos fazem pensar na nossa própria realidade, esta peça, sendo uma peça dentro de outra, foi brilhantemente concebida por “aquele careca que por aí anda”, que sabendo de cor todos os diálogos, ria que nem um perdido durante a peça.
O que há em comum entre a arte e um ginásio, perguntei-me algumas vezes, enquanto as dezasseis personagens expunham o seu papel? O título di-lo muito bem: uma dor. Uma dor qualquer, seja ela física, ou anímica. A dor que permanece depois de exercícios duros; a dor fina de um processo criativo, quando o que mais queremos é que o vazio se preencha; a dor da incapacidade física; somos tantas vezes a súmula das dores que vamos acumulando ao longo dos dias, dos meses, dos anos. A arte liberta; o ginásio representa a libertação. A escolha da forma de liberdade está em cada um de nós. Qualquer que ela seja.

Assisti à forte ligação entre um colectivo que, nas suas diferenças e vivências, soube estender essa ligação ao público; que soube mostrar que para estarem ali foram necessários sacrifícios; que querer é poder.

A dado momento, o guarda-costas diz: “isto nem é arte nem é nada”. Pois bem, digo eu agora, isto é mais do que arte, É TUDO.




O Alguidar está de parabéns, adorei! Uma palavra vos caracteriza: entrega.

Rita, doce Rita, obrigada, foi um prazer conhecer-te!

Paulo Kellerman, a generosidade é a tua palavra.

Licínio Florêncio, tens tatuada a arte fotográfica.

Maraia, o cartaz está excepcional.












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