quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Ópera na Prisão

Olho para a folha branca; talvez a preencha.

Não é a primeira tentativa, espero que hoje seja a última.

Inacabadas as anteriores, fui sempre incapaz de deter o tempo, de reter os momentos, de transpor para as palavras as emoções vivenciadas.



Outras vidas, outros mundos… na verdade, calçar os sapatos do outro nunca foi tão difícil.

Escrever sobre o que vivi e senti nas duas actuações do Projecto Traction – Ópera na Prisão revelou ser um desafio.

A decisão de assistir aos dois espectáculos foi quase imediata, muito por acreditar no trabalho literário do Paulo Kellerman, neste caso como libretista, mas também pelo projecto social que representava e do impacto que teria em outros quadrantes: pessoal, artístico, tecnológico.

Muitos artigos e opiniões foram lançados e divulgados em vários meios da comunicação social, antes e depois, pelo que agora resultaria extemporâneo dissecar pontos técnicos relativos à criação musical e ao seu enquadramento, ou ainda questões práticas e de investigação visando o lado sociológico e interventivo do projecto.





Naquela manhã de Junho, o percurso até ao estabelecimento prisional de Leiria-Jovens foi realizado entre a curiosidade e a apreensão: nunca estivera num lugar assim. A distância que mediou da portaria ao local final de estacionamento, teve um papel preponderante na forma como encarei o que se passou a seguir, com o evidente peso do isolamento e o afastamento das possibilidades.

A revista policial realizada à entrada, a caminhada feita praticamente em silêncio através dos edifícios e oficinas, percepcionando os espaços; como fotógrafa maravilhei-me com a magnífica luz que banhava determinadas áreas e objectos e com a frustrante sensação de ausência de equipamento para captação de imagem. Pormenor insignificante ao considerar o lugar onde me encontrava, com retratos de jovens reclusos espalhados em diferentes pontos, portas e janelas traduzindo tempo, passagem, possibilidades, uma finalidade, a liberdade.

No edifício da tanoaria estava instalada a “sala” de espectáculo: as cadeiras alinhadas e distribuídas da melhor forma para ocupar o espaço e permitir visibilidade para o palco improvisado, grande parte ocupada pelos espectadores, a orquestra da Fundação Calouste Gulbenkian aguardava com evidente ansiedade, a equipa técnica ultimava pormenores; maestro, encenador, libretista com notório nervosismo…



O TEMPO (somos nós)

(decorria a ópera, absorvia os momentos, percepcionava as mensagens, fixava códigos, ampliava emoções)

Os músicos, os solistas, todos os participantes deram de si; os reclusos entregaram-se à música, à interpretação, ao momento, à expressividade, crescendo mutuamente; os convidados partilharam e participaram da transformação; aproximaram-se e envolveram-se.

A viagem, há sempre uma viagem…

O papel primordial da música como desafio e resiliência na forma de crescer, apoiar e minimizar os erros cometidos (por nós e pelos outros); a arte e a co-criação no desenvolvimento e na superação; o crescimento da dimensão humana e da liberdade como possibilidade…

Momentos que rasgaram credos, que causaram dilúvios, que na envolvência do que comoveu e transformou, abriram a dimensão da afectividade e do esforço mútuo.



Ao abandonar o estabelecimento, o primeiro percurso foi realizado pelo exterior, a pé, já longe da inicial intimidade, com os espaços a serem outros, mais áridos, cerrados e controlados; um campo de futebol significaria mais espaço, mais liberdade: aqui, perturbou-me o arame farpado, as vozes encerradas e sem saída; o apelo de permissão, a evidente tristeza.



O tempo somos nós que o fazemos em actos, na nossa disponibilidade para com os outros. O tempo só existe quando lhe dizemos para existir… e é um facto, manipulamos, enganamos, seduzimos.

E nada voltará a ser como antes….





Meados de Junho, viagem de comboio até Lisboa, arrastando a amiga Anabela Gonçalves e a minha filha. Fundação Calouste Gulbenkian.

Cá fora, a liberdade e a exuberância dos jardins, espaços de arte e sentir.





No interior, a grandiosidade da sala e a tecnologia envolvida, com reconhecida evidência do sucesso do projecto junto do público presente, das famílias participantes; da aproximação e partilha, rompendo com o que havia de mais tradicional na ópera: a criação e visionamento de linguagem artística em evidente fusão com novas formas e universos, com os solistas e jovens reclusos a formarem uma ligação coesa e de esforço em prol de um tempo que se quer livre e único; que lhes permitissem recolher momentos e memórias das suas próprias capacidades, das possibilidades de reintegração; manter a esperança e a cumplicidade do tempo, acreditando num futuro colectivo e individual.








Penélope e Ulisses, a história, as palavras: porta, resistência, pressões, amor, escolhas, resiliência, dualidades, decisões, tempo, possibilidades, crenças.

O resultado foi apoteótico; emocionalmente forte. Grandiosidade no aplauso colectivo.








Da porta que me foi aberta, a viagem realizada pelo meu tempo, pelas minhas memórias e experiências; as possibilidades e partilhas dos outros, o tempo e a aproximação; os afectos e a transparência emocional; o valor da família, o peso do amor e da esperança.



Da ópera, a memória… do tempo que somos em sociedade, do tempo que sou em mim e no tempo dos outros; a construção, o crescimento e a transformação revelados nas marcas profundas que ficaram no pensamento e na aprendizagem constante de como calçar os sapatos do outro. Não é fácil…







Sem comentários:

Enviar um comentário