quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

Mil e três palavras

Procrastinar poderia ser uma óptima palavra para um conhecido dicionário improvisado, mas não é esse o objectivo destes breves escritos: serão antes palavras fora de tempo e do momento, por isso será melhor dar-lhes alguma consistência.

“Mais vale tarde do que nunca”, lá diz o provérbio. Sim, também há um vinho, só que não…

Na verdade, nunca imaginei que a compra de dois bilhetes para uma peça de teatro pudesse levar, semanas mais tarde, a uma noite tão recheada de episódios animados e, porque não, caricatos.






Do enquadramento

Nome da peça – “Noventa e dois por cento”
(espectáculo inserido no CenOurém)

Data – 12 de Novembro de 2022, 21h30

Local – Teatro Municipal de Ourém

Interpretação – Grupo de Teatro Apollo, do Centro Recreativo de Pedras Ruivas

Texto – Paulo Kellerman



Dos factos

Leiria, 12 de Novembro, 20h45

À hora combinada e sentada no carro com a minha filha, aguardava que as minhas passageiras descessem. Tique-taque o relógio avançava. Tique-taque nem sinal delas. Tique-taque, 21h. Começava a ficar preocupada quando apareceram.
Entre sair da cidade, seguir as instruções de quem sabia o caminho e olhar para o GPS, enveredamos pela estrada nacional para Ourém. Engano ou excesso de confiança? Até hoje, não sei…

(Quem conhecer esta via e estiver a ler isto, saberá do que falo)

Uma estrada cheia de curvas, a noite escura como breu e de quando em vez, uma lua cheia brilhante assomava entre as árvores e as nuvens; enquanto conduzia, fazia saltar os olhos da estrada para o GPS (que estava muito “queixoso”) , ou para o relógio e pensava que não íamos chegar a tempo.

A velocidade, confesso, estava desfasada da realidade… a certa altura ouvi:
- Cristina, que apito constante é este?
- É o GPS que avisa do excesso de velocidade. Tenho que acelerar para chegarmos a tempo e mesmo assim, não está a dar para recuperar.

Não estivessem a acontecer estes imprevistos, nada se passaria de relevante, estaríamos a conversar animadamente sobre os mais diversos assuntos, pois as conversas são como cerejas... De repente um obstáculo, um rubro “papa-reformas”. Revirei os olhos… Naquele percurso de longos traços contínuos, foi sinal de atraso. Perdi o tempo, ainda que escasso, que conseguira recuperar; até a miúda dizia: “Senhor, vá para casa ver futebol.”.

Recorri a medidas extremas e ultrapassei-o. O GPS não tendo forma de se queixar daquela manobra, retomou a cantoria pela velocidade.
Estávamos a chegar; já era visível a luminosidade do casario citadino e recuperava a esperança. Subitamente, na rotunda, luzes azuis intermitentes de meia dezena de viaturas: uma operação STOP da GNR.
- Hoje não! Hoje não! – pedi mentalmente enquanto passava pelos agentes. A sorte protegera-me, não pela audácia, mas sim porque estavam ocupados com outros condutores.

Com a cidade em obras, mais um contratempo. Consegui estacionar muito próximo do teatro e depois de uns passos corridos, estava finalmente a sossegar. Puro engano. Na validação dos bilhetes o aparelho de leitura deixou de funcionar. Após verificação, mantinha o problema. Se eu dizia palavrões? Sim, alguns, mas no recato dos meus pensamentos.

Tique-taque, tique-taque: faltavam quatro minutos para a hora do espectáculo.
Depois de mais um apito (este bem diferente dos que ouvira durante a viagem), estava finalmente validada a minha entrada e respirava de alívio, depois da quantidade de peripécias vividas em tão pouco tempo.

Mas atenção, que isto ainda não acabou.
Ao descer em direcção ao meu lugar, com uma outra funcionária a perguntar-me se precisava de ajuda, desequilibrei-me; pareceu-me até que um degrau da escadaria tinha um distanciamento diferente. Salvou-me o braço firme da minha filha, evitando-se desta forma um número de circo comigo a ficar estendida no chão.
Sentei-me. Suspirei. Com calma, comecei a olhar à volta, nos poucos segundos que ainda restavam para dar início à peça. Apagaram-se as luzes.



Da peça

Uma apresentadora do noticiário televisivo quebra em direto: interrompe a leitura da notícia, começa a chorar e abandona o estúdio. Porquê?
(excerto da sinopse)

A partir daquele instante desfilaram em palco personagens, estórias, dramas pessoais e momentos que me prenderam totalmente a atenção.
Da encenação (Dora Conde) à representação (Grupo de Teatro Apollo), ambas soberbas, passando pela forma magistral como o texto foi escrito pelo Paulo Kellerman, dei por mim no questionamento de atitudes e no confronto com os meus próprios dramas e melancolias; e de como é mais fácil falar dos outros, fugindo-me dessa maneira.

Trazer para o palco o mundo do pequeno ecrã, dos momentos televisivos que acontecem e que estão diariamente presentes na vivência de cada um de nós sempre que nos conectamos, é um acto de coragem e de grande sensibilidade. Percepcionar o outro como ele é, deixar de lado rótulos, ideias pré-concebidas, é evidenciar a necessidade e a importância da capacidade de sentir empatia pelo outro.
Desengano-me da facilidade de tal pensamento: por vezes falta-me a vontade e a perspectiva para o fazer; ignorar ou disfarçar, resolve.


Com “Noventa e dois por cento” somos levados a gerir a nossa empatia, colocando-nos no lugar do outro, numa tentativa de compreensão do ponto de vista alheio, dos meandros emocionais e das sensibilidades.
Vivemos a correr e, quase sempre, demasiadamente focados nas próprias perspectivas, ignorando a sensível, e tantas vezes complexa, realidade das pessoas que nos rodeiam.

O talento e brilho dos actores, o profissionalismo e perfeccionismo dos detalhes, nada estava descurado no cenário e que era reforçado com entradas subtis de elementos que enriqueciam os diálogos e sobretudo os silêncios, dando abertura a que pudesse centrar o pensamento e dar liberdade às emoções.

Ao longo do espectáculo ri imenso e chorei na mesma proporção (o que não é difícil). Comoveu-me a participação da Ti Irene, de 98 anos, com a sua voz previamente gravada, representando a personagem da avó e corporizada através de uma marioneta que esteve sempre no palco.


No final foram projectadas as ilustrações que a Maria, filha do Paulo Kellerman, realizou em tempo real durante um dos ensaios a que assistiu: um belíssimo trabalho.

Muita coisa ficou por dizer, mas não por sentir.

Regresso pela mesma estrada…









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