domingo, 29 de maio de 2022

Cordas


A lenta caminhada pela ruela da aldeia permitia a percepção de um passado há muito abandonado: janelas partidas, memórias esventradas nas paredes ruidas, cortinas amarelecidas e esfarrapadas.

Arrancada do torpor sensorial das memórias alheias, viu-se, naquele momento, regressada ao presente. E esse presente resumia-se à inesperada guardadora do rebanho de cabras, aos balidos das crias, ao cheiro acre característico destes animais e à estranha musicalidade dos cascos no disforme empedrado do caminho. Passaram vagarosamente, deixando um rasto de dejectos semelhantes a caroços de azeitonas.

Permaneceu encostada ao muro até ao regresso do silêncio e retomou a caminhada, ainda com o pensamento pousado na mulher pastora de rosto marcado e entristecido, pele tisnada, cabelo curto e áspero, mãos gretadas e calejadas, as unhas lascadas: que opções lhe teriam sido mostradas pela vida? Escolheu ou foi empurrada? Ou...

Segue o pensamento por um lado e o olhar por outro, até encontrar uma corda entrelaçada num ferro cravado no granito: o tempo em abandono. Belo. Sentiu o momento como um pedaço de arte esquecida. Aproximou-se para apreciar e um abismo inesperado abriu-se à sua frente. Um pormenor. Aquele pormenor...

Lera algures, que a Arte poderia ser comparada a uma longa corda entrelaçada que resgatava quem estivesse afundado em profundos abismos pessoais, sociais... mas aquele momento fê-la vacilar com tristeza: encontrara o abismo de alguém...

(nota ao pormenor atrás da corda)






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