quinta-feira, 30 de abril de 2020

Reflexos


Sentada no muro, pernas balançantes, há uma imensidão aquosa de quietude nesse espelho que me devolve a imagem imediata de dois mundos: 
O da simplicidade, ali, quase estática, quase infinita; intocável. O mundo que eternizo numa foto. 
E depois o do outro lado, o meu, imenso, sim, mas agitado, turbulento, nunca em repouso, nem mesmo no sono. Mergulho nele e sinto-me bem. Gosto de quem lá encontro; mas ainda há portas que não abro. Parecem-me desconhecidas, quase assustadoras. 
Vou andando por ali, à espreita, tentando descobrir como as posso escancarar, sem medo. Parecem portas de emoções, contidas, escondidas… 





(texto  de 30.01.2019)

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Rasto de luz...


A luz permite vislumbrar o visível do invisível, porém, essa capacidade está vedada à maioria. Ver, apenas é possível a quem lhe sente o rasto, a quem entende as suas mudanças, a quem se deixa levar nos seus braços. Ao descobrirmos que o outro lado de nós pode ser tão ou mais incrível, quanto assim o queiramos e sem limites...





(texto de 10.02.2019)

No côncavo dos sonhos


A inversão do mundo como o vemos num espelho aquoso, translúcido e de brilhante prateado, em que o imaginário abandona a realidade e entrelaça fantasias únicas, não partilhadas e onde no côncavo dos sonhos, ou no dos desejos, vive a essência etérea do que seduz...






(texto de 18.01.2019)

terça-feira, 28 de abril de 2020

As malas...


Encheu as malas de saudades. Os cabides ainda oscilavam pela pressa com que foram arrancados; as gavetas escancaradas com força mostravam a desarrumação em que ficou o passado... guardou o que queria, sabia bem o que levar.
Tinha pressa da rua, fome de luz. Saiu. O sol queimava-lhe a pele translúcida; a paixão em sangue corria-lhe veloz nas veias azuladas. Não importava. O afago da nortada apaziguava essa sensação. Renovou-se...
Agora um longo percurso esperava-o. O tempo de avançar tinha chegado. Com as malas firmemente presas desaparece, deixando um lento rasto de pó atrás de si.






segunda-feira, 27 de abril de 2020

O que dirão umas às outras?


Sopra a brisa cortante e elas, habituadas ao fustigar das intempéries, vão regulando a força que precisam, enraizadas, são altas e experientes, há muito que habitam este caminho, encostadas a esse muro de adobe, que esboroa e desmorona, tão lenta quanto compassadamente, sempre; da casa pouco mais resta que as paredes. 
Por vezes a conversa recai sobre os antigos donos e no pouco tempo que viveram naquela casa. Um dia chegaram em burburinho trazendo um enorme carro carregado de malas coloridas. Mais tarde, nesse dia, chegaram as mobílias, novinhas. Também eles novinhos, de idade e na experiência de vida. 
Sorridentes e enamorados todos os dias passeavam pelos campos e caminhos arborizados. Ao final do dia, sentados na varanda, às vezes com uma música suave de fundo, ela lia poemas em voz alta, enquanto ele fumava e vagueava o olhar no horizonte distante. 
Mas um dia a música foi parando e as leituras cessaram. As vozes eram outras, exaltadas. "Tu queres, mas eu não quero! - dizia ele, irritado - Este assunto não era para ser tocado. Nesta casa não haverá crianças! Assunto encerrado!". 
Na varanda, juntos, nunca mais foram vistos. 
Um dia pela manhã, sob uma chuva torrencial, chega um carro preto devagar. Parou sem buzinar e a bela dama abriu a porta e, de cabeça erguida, tendo na mão apenas uma pequena mala de viagem, entra no carro e nele parte. 
Dias mais tarde, ainda com menos burburinho e quase em silêncio, todos os bens da casa que estavam encaixotados foram arrumados e carregados no camião que chegara. Sem delongas, também ele sai de casa e desaparece, veloz, no meio do pó que levanta, no seu carro de luxo. 
E desde então o esquecimento caíra na casa, ouvindo-se por vezes murmúrios que lembravam a discussão que acabara com a tranquilidade que ali morava. 
Neste diálogo de vidas estavam elas entretidas quando são interrompidas pela mais pequena, "olhem ali, está um carro a chegar, teremos novidades?". 
No que a sua altura consegue alcançar, a mais esguia espreita e esboçando um sorriso imaginário, diz: 
- Novidades dessas que pensas, não, mas é sempre uma boa-nova e um prazer ter por cá a fotógrafa que venera este nosso recanto! Como será que vem hoje? Feliz, calada, sorridente, triste, a cantarolar, ou simplesmente aparece pelo prazer da paz que aqui encontra? Vejamos como caminha e logo descortinaremos, mas com frio está, não será fácil ver-lhe o rosto, tem um gorro a escondê-lo. 
E por ali ficam, quietas, à espera e a observar com curiosidade quem para elas se tornou presença assídua, ainda que por breves períodos, nesse lugar a que ela chama, o silêncio dos pássaros.






(texto de 21.01.2019)



O jantar


Tinham saído todas juntas, finalmente. Demorou a agendar aquele encontro. Foram colegas de faculdade no início e a amizade cresceu entre aquelas seis amigas ao longo dos anos de estudo. 
Concluídos os cursos, cada uma seguiu um percurso diferente, contudo mantendo os contactos. As redes sociais deram uma grande ajuda. 
Seguiram os seus percursos profissionais, casaram. Algumas já eram mães. Daí a dificuldade de agenda.
Na casa dos 30, todas elegantes e bonitas. Quem parasse e olhasse para este grupo de mulheres, veria que cada uma tinha a sua beleza própria e não se descaracterizaram do que tinham sido. Notava-se sim evolução pessoal. 
Estavam reunidas, falavam rapidamente, riam alto; parecia que se tinham afastado apenas na véspera e que não eram dez anos de separação presencial. 
No meio da conversa efusiva a seis vozes, em que lembravam noites longas, livros e estudos, noites de diversão, amigos idos e desaparecidos, serenatas, latadas e queimas, há uma voz trémula que incrivelmente se sobrepõe: 
- Por vezes sinto que a minha vida é um sonho. E não quero acordar. 
Foi a Matilde a falar. Olharam-na, caladas, à espera de continuação. A Matilde era a que estava com uma vida melhor, muito mais estável, dois filhos lindos. Era sem dúvida a que estava melhor. Realizada. Fixam-lhe o olhar. 
E a Matilde, pálida, deixa entrever uma das olheiras mais escura que até ali o cabelo longo, negro azeviche, tapara. Estava disfarçada pela maquilhagem, mas notava-se. 
Silêncio absoluto. 
- A minha vida é um sonho e nele tenho de viver, porque se eu acordo, ponho termo à vida, ou pior, ponho à dele. 

(Nem sempre o que se vê fora de portas corresponde à verdade. E haverá verdades?)


(texto de 09.12.2018)

Ah! A música...


Musicalidade das palavras em sílabas
derramadas
Sentidas, sussurradas nas vogais
ensanguentadas
naqueles delírios pautados da criação.

Que música escuto que mareje o meu olhar?
Que música me arranca sorrisos?
Que música sinto que me conheça?

(Todas e nenhuma)

As melodias são o que espero
São o silêncio
A água que despenha em catadupa
estrepitosa
O sol, seja ele ausente ou presente na manhã
São a partilha na simplicidade
distante

A música é o tempo que tenho
A terra que cheiro
A erva que piso
A areia que agarro.
A onda da qual não fujo.


Música?
Ah! A música...
Sorrio e sinto a música...






(texto de 01.10.2017)



domingo, 26 de abril de 2020

E o dia acontece...


Suave e lenta
De uma calada janela ausente
Chega
Trinados e chilreios o silêncio rompem
E ao longe, na linha desenhada
O horizonte enche
Ei-la
Dourada. Feminina. Ondulante.
Luz de encanto.
Inebriante.
Protagonista, antecipa o momento.
Reluzente.
Além espreita um raio
E a magia momentânea agiganta
Espanta
Luz e sol dançam e reflectem
No extenso espelho salgado
Prazeres eternos
Crescentes.
E o dia acontece…





(texto de 31.05.2018)


sábado, 25 de abril de 2020

... de terror.


Fecha os olhos… ainda treme aterrorizada, pois consegue sentir aquelas mãos pequenas e ainda sapudas a amordaçá-la. 

Durante a tarde andara às compras no supermercado do bairro; a sensação de estar a ser observada era incomodativa, para não dizer inquietante. Olhara diversas vezes por cima do ombro. Nada. Apenas via uma criança de camisola com capuz vermelho que alinhava umas caixas, em jeito de brincadeira, enquanto esperava pela mãe. 
Estranha sensação. Queimava... Pegou no resto das coisas, pagou e saiu. 
Estava frio e a pressa de chegar a casa era tão grande que não se apercebeu que estava a ser seguida. Quem observasse este momento veria uma pequena figura, ligeiramente afastada, no encalço da apressada mãe, dando passos curtos, leves e rápidos. Silenciosos. 
Carregada com as compras, entrou no prédio, empurrando distraidamente a porta para a fechar. O elevador continuava avariado e subiu a escadaria. 
Estafada da subida, nem pousou os sacos à porta de casa. Abriu-a com tudo na mão. De repente viu-se empurrada e atirada ao chão e levantou o olhar. 
- QUE É ISTO?!? - gritou. 
A criança do supermercado sorriu de forma macabra e disse: 
- Vamos brincar? Queres brincar comigo? E nesse instante, picou-a. Um calor abrasador fustigou-lhe as entranhas. Que se passa?!? 
Agora está a ser amarrada e amordaçada, tem o corpo imóvel mas sente tudo.
Do bolso do casaco da criança vê sair um bisturi. Começa a entrar em pânico. 
- Vamos brincar? - pergunta e começa a cortá-la lentamente nos braços. 
A dor é atroz. Olha no profundo verde daquelas brilhantes pupilas. E da dor física e da alma, verte lágrimas pungentes em gritos silentes e dilacerantes. 
O líquido injectado começou a surtir efeito e uma ténue sonolência apoderou-se dela, deixando-a sem reacção e vontade de lutar. 
A criança pára. 
Sorri-lhe e passa-lhe a mão no rosto. Teme o pior. Acaba por ouvir: 
- Pareces a minha mãe! Desculpa. 
Tira-lhe a mordaça, solta as cordas e depois de um beijo na bochecha, sai. 
Tremendo descontroladamente, tenta chegar ao telemóvel arremessado no chão. Desiste. Não consegue. Adormece ali. E ela? A criança? 
Na rua e já na esquina da viela do hotel, está encostada, enorme e de olhar brilhante e sedutor. Procura a próxima vítima e desta vez não pretende deixar-se vencer por lágrimas e olhares. 



(Esta foi a minha "portuguese horror story" escrita para a foto do @tiagoaleixo (Instagram) e que com a devida autorização, partilho).




(texto original de 26.10.2018, revisto em 24.04.2020)


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Suspensos


Suspensos nesse tempo aquoso
Ficam afogados no silêncio profundo de um imerso respirar.
Contudo, anoitecidos os sentidos, o que fica: vontade de morrer ou viver?
De uma morte anunciada, a vida, renascida.
De uma noite acabada, os sentidos vivos da luz.
Amanheceu...





(texto de 20.04.2019)


Normalidade aos passos


Estou sentada na varanda de olhos fechados. O sol é retemperador depois de tantos dias de chuva. Aquece o corpo. Aconchega a alma. Afugenta o medo. Sacode fantasmas. 
No silêncio de gente que agora reina, apercebo-me do ruído metálico de uma porta a ser aberta. Espreito ligeiramente. É na casa ao lado. 
Saiu para a rua. Os gatos ficam à janela, como é costume. A luz magoa-lhe os olhos, fecha-os com força. O isolamento, aos poucos, rouba-lhe a alegria; disseca-lhe o sorriso transformando essa linha suavemente curva em esgar moribundo. 
A porta fecha-se lentamente atrás de si. Encosta ao batente. Levemente. Clique. 
Avança devagar, pousando primeiro o pé esquerdo no campo minado. Hesita. Parece pensar. Não se costuma dizer que para ter sorte é com o direito? Não há azar. Não está a entrar para algo novo. Está a sair para o trajecto diário de roleta russa. Atravessar, passar e regressar incólume. 
Pisar o mesmo chão da véspera. Palmilhado com cautela. Pisado primeiro levemente e depois com outra firmeza. Avança. Contudo, o medo sempre presente. Uma sombra silenciosa, invisível. 
Repetir as mesmas pegadas e esperar que ninguém tenha reparado nelas. Que não tenha calcorreado o mesmo percurso aparentemente seguro. Sente um sopro arrepiante, é a brisa dessa soalheira manhã de Primavera. 
Afasta-se. Continua sem sorrir... e os gatos permanecem à janela.





(texto de 02.04.2020)


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Um livro


Por vezes sinto que apenas o meu corpo está vivo

e que ao desdobrá-lo, assim o encontro, livre.

Vivo, intenso, esfuziante, aveludado, compacto.

Duro. Intemporal. Pleno.

E o sangue fervilha delas.

Cravadas. Doridas. Infames. Tangidas.

Sentidas. Sorridas. Torneadas.

Alegres. Choradas. Onduladas.

Texturas e cheiros do tempo impregnados

Em sensuais movimentos folheados.

E nele mergulho os pensamentos

De vidas passadas, presentes ou desejadas.

O meu corpo está vivo colado ao que sou:

Um livro.






(texto de 20.01.2020)


Desacerto

Uma passagem em cada estaca
Uma estaca em cada vivência
Longas, breves e difusas
Afastadas
Coloridas e imaginadas
Silenciadas...
Ligadas entre si
Fluem essências
Mornas e texturadas
Distantes.
Nesse espelho d'alma
Uma luz desponta
Expande
Roça leve na superfície
Imperturbável.
Um arco desenhado em trilho
Apelativo
Atrai e prende...
Curvando convida
E nesse ápice de luz
Surge a descoberta
De tudo aquilo que seduz...





(texto de 10.05.2018)


Garras disformes...


Vagas silenciosas que antecedem o desconhecido 
sopram
Parando, escuto.
O nada responde.
Ali, adiante... mais um pouco.
Impossível...
Garras disformes 
extensíveis
Impelem os sentidos
Entretecendo prata e diamantes
na manhã estacada 
escorrida
de uma margem perdida.
Os acordes líquidos 
solitários
Numa pauta aveludada acenam
Melodias de penumbra 
aguardo
Por aquele ouro gritante ausente
Mas não, hoje não aparece...






(texto de 26.09.2017)


Morrer de pé...


Saíra cedo naquela manhã. O voo esperava-a. Queria reviver no silêncio das suas ruas os momentos que meses antes tivera com Omar. 
Naquela tarde longínqua na cidade de Roma, deixara o trabalho no escritório para caminhar um pouco. Estava saturada. Irritada. As pessoas professam uma única religião, a do próprio bem-estar. Lançam as suas preces e oram aos seus deuses sem qualquer sentimento ou fé. Ocas. Vazias. Desilusão. 
Deu por si numa ruela sem saída, que desembocava num largo. Solitária, aquela árvore despertou-lhe a atenção. Cada ramo isolado desenhando contornos despidos. Caminhou até ela… 
E do outro lado, sentado numa das raízes salientes, um homem. Parecia alto, moreno. Sério o rosto, triste o olhar. Pensou: O sorrir não mora ali. 
- Buon pomeriggio! - proferiu, não esperando resposta. 
- Boa tarde! - foi a resposta. 
Surpreendeu-se com o inesperado cumprimento em português. Sorriu. E durante longos meses continuou a sorrir e a brilhar. Andava feliz. O amor fizera milagres. 
A noite do telefonema fez desabar esse pequeno mundo que estava a construir. 
Omar tivera que ir ao país natal. Assuntos de família. No regresso da aldeia e enquanto esperava na cidade por um táxi que o levasse ao aeroporto, não teve sequer tempo… 
Um bombista-suicida acabara com os seus sonhos. 

(…) 

Hoje sabe que, quando estiver novamente naquele largo, abrirá os braços e num sussurro confidente, estas palavras dirá: 

“Armo à minha volta um escudo e resguardo-me com uma frase que a memória me traz: «Morta por dentro, mas de pé, de pé como as árvores.»”






(texto de 05.12.2018)


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Caída...


No restolho do Outono, os corpos definham.
Da pujança que tiveram, perdida ficou nas seivas que alimentaram a cor e o desejo.
Os toques e os abraços, fluidos efervescentes, morrem no tempo que já foi e, caída em mim, agarras-me, intensa e plena. Abafas os meus sons gemidos com um beijo, na certeza que será o último.
Partes efémera, deixando-me neste breve vazio...







(texto de 31.12.2018)


terça-feira, 21 de abril de 2020

Pensamento de vento


Sentada no muro do parque observa o céu, abstraída de si enquanto os outros passam, indiferentes a quem ali está. O vento é forte e sacode o folhelho ainda resistente mas esquecido, que resta nos ramos retorcidos das árvores adormecidas neste inverno gélido.
As nuvens são enormes arrastando-se numa lentidão exasperante, separando o céu em dois segmentos: azul límpido e azul texturado. Nada vê, apenas intui. Está de olhos fechados.
E como estará quando levantar uma pálpebra? Quando abrir os olhos? O que terá mudado? Que transformações haverá à sua volta, nela, nos outros? Uma resposta tem, o tempo. Esse tempo que, de contada invenção, é imparável e intransigente. Esse tempo que mesmo querendo a sua retenção, aprisionando-o em aperto numa mão fechada, num punhado de areia, tem sempre forma de escapar. 
Sacode os ombros. 
O sol está forte e sente-o no rosto. Sorri. Um sorriso calado, de si para si. Uma brisa fria ondeia nas ervas do descampado do outro lado do muro. Estremece. 
O pensamento acorda e sussurra-lhe: 

- Quantos ventos sopram ao longo do teu dia? Qual a velocidade das nuvens que não vês? Os teus sonhos seguem nelas ou desvanecem-se? 

Volta a estremecer. Abre os olhos e circunda o espaço, perscrutando tudo com atenção. Acena em resposta muda. Levanta-se e aconchegando o casaco, caminha no sentido do passadiço onde estivera nessa manhã. Já sabe que direcção tomar na encruzilhada. 






(texto de 21.01.2020)

... ar sustido.

encostou-se à parede e aquietou
(frio lapidar nas costas)
sustém a respiração... por quanto tempo será capaz de aguentar?
(ouve as vozes que murmuram)
sustém a respiração e na ansiedade, cerra os olhos para não sentir.
(olhar lembra dor)
cada molécula de ar transporta uma amálgama de emoções e de cores
(cor do sangue fervente)
continua sem respirar... porquê?
(lateja a pele)
o pânico apodera-se do corpo franzino
(na porta, o espelho reflecte nódoas)
treme e a respiração quebra, toca o lábio vermelho sangue
(caíra com o embate, tropeçou dirá)
o cansaço é notório, a dor acompanha silente
(nada tinha, nada tem)
respira lentamente, o ardor na pele é insuportável
(sopa fria, mão em estalo quente)
vozes que se afastam, é a oportunidade
(a hora das horas que chega)
afasta-se cambaleante, amedrontada mas consciente
(basta a uma vida sem vida)
atravessa a rua sem carros, a noite escura é companheira
(a dor lancinante do filho perdido)
o empedrado escorregadio torna os passos hesitantes
(um pontapé...)
hoje vira a página firmemente
(o rasgar de um parto de morte)
a campainha ali, a soleira, o outro lado
(recomeçar...)
boa noite, preciso de um abrigo onde ficar...


(texto de 09.02.2020)

Sublime


Uma luz torna-se sublime quando nela, ou por ela, vemos o que mais ninguém vê… quando no imediato espanto, ela abraça espaços, rostos, olhares, sorrisos, espelhos, d’água ou de cristal, e algo reflecte… quando a beleza se transforma num brilho etéreo e é nesse ínfimo segundo que a inquietação surge e o temor de perder o momento é real… 

O que me ilumina e me faz feliz no tempo em que esse sublime segundo dura, é a verdadeira essência do que procuro.







(texto de 05.08.2019)

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A rua



Dois anos passados de uma quase precisão espacio-temporal. Retorno ao Porto de câmara na mão. Não para um concerto, como em Dezembro último. Desta vez não foi o comboio que me trouxe, aventurei-me de carro levando a pequena comigo. Com os amigos à espera, a manhã passou a voar. Vi um outro Porto. O do Douro e o do sonho. O do vaguear e o do descobrir. Roupas e intimidades descobertas estendidas em cordas, esvoaçantes. As vozes e sons pronunciados, típicos.
Encanto. Sorrio. 
Corrida a manhã, entre ruelas e escadarias, odores e gataria, almoço precisa-se. Sentados os quatro na esplanada em conversa divertida, o repasto aguardávamos. 
E de repente um braço estendido na recolha da louça anterior, captou a minha atenção. Braço de rapaz jovem, de pêlos rapados. Tatuado. Educado no trato. Nada mais fixava que aquelas duas linhas de letras preenchidas e assaz sentido de vida. Filosófica. Profunda. Dorida. 
Envergonhada dei por mim, com delicado pudor questionar: “Esta frase é tua?”. 
E o Ruben (é este o seu nome) responde sorridente: “Quase! Adaptei-a apenas a mim!”. 
Pedi, também eu a sorrir, se podia fotografar. Anuiu. 
- E partilhar, posso? 
- Claro que sim. 
Curiosas no olhar e quase sem perguntar, o Ruben explicou o significado. 
Fora abandonado pela mãe ainda bebé. Recolhido foi por uma família de adopção. 
Cresceu num meio de trabalho e educação. Sempre agradecido e conhecedor da sua história de vida. Lutou por ele e pela sua família. A única. A que o ama. Estuda e trabalha. Ambiciona. Sabe que é possível. Basta querer. Os seus pais do coração quiseram. 
Como forma de nunca esquecer esse amor e esse sacrifício, decidiu gravar em dor essa frase que o acompanhará: 

Para quem sabe olhar para cima 
Nenhuma rua é sem saída







(texto de 12.12.2018)

A surfista

Hoje fora um dia em que tudo correra mal. A greve desestabilizara a maldita rotina que mata. O trânsito infernal, todos na rua... enfim.
Durante o dia só quisera um pouco de sossego, contudo não o encontrou. Pedidos, reuniões, papéis. Hoje era para ela que convergia a lembrança. A dela e a de todos.
Inexorável e carrasco, ele, o tempo, parecia seguir mais lento, brincando.
Tal como criança na escola ao toque da campainha, chegada a sua hora, dá um salto e num ápice está fora do edifício. Libertadora a corrida até casa, apenas um objectivo a move agora.
O mar que espera por ela...
Já de prancha pousada na areia, deixa-se escorregar e sentada nas pernas, fecha os olhos. Mãos quase juntas, respira profundamente. A maresia carregada de sal, impregna-lhe a alma. Repete o exercício, mas agora lentamente. Está em paz e sente-se serena.
Levanta-se. Caminha até à linha da água. E entra...
Passa precisamente um ano desde a última vez que o fizera.
Deita-se na prancha que fora do irmão e nada até à rebentação...







(texto de 12.09.2018 escrito e nunca publicado para uma foto de uma querida amiga, Sofia Sousa Silva, de Amesterdão)


domingo, 19 de abril de 2020

Na natureza...



... capta-se a sensualidade silenciosa e latente.
Contornos curvilíneos.
O olhar lento, acompanhando a gota cristalina.
E o tempo pára...




... mentir.


Mentir todos mentem. E já mente quem o negar. Se são mentiras pequenas!? Não deixam de sê-lo...
Talvez nenhuma delas seja desculpável, mas mentir por prazer é magoar, ludibriar quem acredita, escapar à verdade cobardemente.
Mesmo nas pequenas mentiras, que são sempre uma estratégia momentânea de escape, um recurso comportamental que remata atitudes e eventuais fases de insatisfação pessoal, quem de facto sai enganado é a própria pessoa. Somos nós que mentimos. Não há volta a dar. É esta a realidade. O retorno da mentira é essa responsabilidade, essa posterior sustentabilidade do que se disse, do que se fez.
Tornamo-nos estacas pontiagudas, onde a mentira pode rebentar... somos fingidores, assumindo máscaras encondendo-nos por trás. Alguns, ficam enredados nas malhas finas da teia que teceram, outros serão eternos prisioneiros e escravos delas. Mentiras pequenas que nem pedras, acumuladas no fundo do ser e que reflectidas no espelho, devolvem incertezas.
Se olharmos bem, nessa perspectiva, a nossa grande verdade é cinzenta, desprovida de conteúdo, de textura. Somos um vazio perdido na opacidade do que não existe.






(texto de 02.01.2020)

sábado, 18 de abril de 2020

Tempo de ter tempo...


Do tempo em que se tinha tempo para ter tempo
A vida fluía sem sobressalto
Esses grãos de areia

(Oh, insignificância!)

juntos no areal de uma praia qualquer.

(Tempo que passa)

O pensamento ausente de perdas
A vida plena de especiarias
Aromas e cheiros exóticos

(cores vivas!)

Fluência, influência espantosa
Os dias

(esses!)

vão flutuando nas ondas silenciosas...
Melódicos acordes de luz
que pintam sensações e ilusões.

(Tempo que passa)





(texto de 12.09.2017)

...luz que vagueia...


Ainda que abra os ramos, abraço de apelo pungente,
nunca conseguirá tocar-lhe.
Numa luz que vagueia neste mundo difuso,
a outra afasta-se.
Etérea.
Eterna e solitária...





(texto de 07.01.2018)

Linhas

Quem seremos no final destas linhas?

E das que atravessam a caminhada?

Tiras iluminadas.

Filmes interrompidos.

Pensamentos pausados.






Travessia

Vejo-te esmagadora... e ali tão próxima.
Acenas-me, luminosa. Desafiadora.
Intocável.
Neste desconhecido silêncio não me reconheço. A escuridão cerca. Agarra.
Permaneces Intocável. Brilhante.
Lufada de melodiosa inspiração.
Travessia.
Liberdade...






sexta-feira, 17 de abril de 2020

... despertar.


A noite das fadas
de poções e mezinhas
no bosque de encantamento
entre caminhos e trilhos, chega...

As gotas perfumadas, pingadas
das árvores de sombras esqueléticas
recolhidas por duendes saltitantes,
delicadamente tratadas,
serão a cobertura singela
de um fresco e vindouro despertar.

Encontradas escondidas
as pérolas de luz
fogem das sombras de fantasmas
em assomos misteriosos.

Nada será perturbado...

A eternidade de um bosque
na noite que se esvai
será uma constante festa
Renovada, colorida, dourada
Trinada, cantada, saudada...

Levemente a luz vai abrindo rasgos
E do alto que surge
Lentamente pingada
vai derramando brilho único
que perdurará eterno diferente
em cada minuto
em cada olhar...






(texto de 15.10.2017)

... hora mágica.


Sons rasteiros
no restolho das passadas
Olhar elevado
no enlevo da natureza
e há um embalo que seduz.

Súbito, um estrépito, atento
E ali, escondidos espreitam...

De uma beleza dourada, sorriem
e descendo,
a prata envolve-os
belos, aconchegados...
Esquecida.

Entretanto...

Pios e arrepios
suspiros nas ramagens
a noite ia chegando
e os rumores do bosque, suavemente
em murmúrios
iam alterando a melodia.
Serenando...
Há uma hora mágica a chegar
O bosque acorda...
é esta a sua hora.





(texto de 15.10.2017)

Sanvean (I Am Your Shadow) - Lisa Gerrard

Ainda das vozes indescritíveis que são arrepio d'alma...


https://www.youtube.com/watch?v=cl_diN-Midg&t=98s

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Sentidos

Corro para uma solidão que me sufoca. Não a evito. Abraço-a. E dentro dela, rejeito-a. Inflamo os sentidos. Inquieto o olhar. Recorto imagens. Reconstruo existências imperfeitas. Teço caminhos solitariamente infindáveis e os fios de que são feitos, separadamente quebradiços, tendem a não consolidar e a ficarem perdidos nesse rasto de desordem. Avanço para uma solidão exígua, irrespirável...





Escapar


O olhar escapa nas linhas que guiam.






A carvão...


Linhas negras do carvão

Oscilantes
Que na leveza aveludada da dança
na alvura do papel vão desenhando
Sentidos
Luz
Sopros
Almejos
Barcos silentes

Petrificados.

Nos espaços intransponíveis o carvão cria
(ou recria?)
Acordes de reflexos tangíveis
de vozes lamurientas e agonizantes
Onde nada é o que parece
E o intransponível deixa de sê-lo
mormente pelo carvão de linhas negras
espelhadas, translúcidas
nas intenções eternas do "sem princípio nem fim".
Oscilantes...


(Porquê carvão?
Cá p'ra mim, boa pergunta...)






(texto de 27.08.2017)

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Flutuo no teu manto de luz


Aqui
A noite cedeu o seu lugar 
o dia
calmamente iluminou 
as névoas
cadenciadas em bancos assentaram e por ali confundiram.

Decido recuar.

Os ecos de vozes 
distantes
atravessam a frequência que separa as realidades.

Respiro.

Pequeninos, imaginários da noite
os pirilampos saltitam nos ramos  
brincam. 

Prata de luz nos lodaçais que surgem
Tudo não passa de ilusão...
Ou talvez não.

Da margem vejo-te e flutuo
etérea e translúcida
Flutuo no teu manto de Luz.




(texto de 22.08.2017)

BlackieBlueBird - Ghost River

Algumas vozes são indescritíveis...


Azedas amarelas



Em passos indeléveis a vida chegou e mostrou-se intensa. Conquistou-me...

Por quanto tempo, perguntarás. Não sei e no fundo, não me interessa! É uma oportunidade. São possibilidades de ser e fazer; de criar e sentir; de sonhar, sim, sonhar. 

Sorris?! 

Sabes!? É que ainda tenho em mim a criança... Despertou. Vou tocar campainhas. Acordar gente. Chapinhar em poças de água. Comer algodão doce. Cantar em voz desafinada e dar enormes gargalhadas por nada, por tontices. Sentar-me de pernas balançantes no muro de um qualquer caminho e trincar azedas amarelas. 

Apetecia-me...




(Texto de 19.07.20219)

A espiral dourada e o Feiticeiro de Oz

Do meu jeito peculiar e tantas vezes fora da caixa como costumo dizer, não seguindo correntes e contrariando-as, fugindo até, não tenho formalismos nem sequer formação técnica, o que faço em fotografia segue muito o que sinto, o que sei, aquilo que o meu instinto capta e transforma em momentos. Inspiro-me e respiro o que me rodeia. 

A escrita que afinal sempre viveu em mim, mas que esteve adormecida, foi ressurgindo com a fotografia e aos poucos vejo-me numa simbiose criativa que inicialmente me espantava, mas que agora tem uma razoável dimensão interpretativa. Agrada-me esta faceta. Sinto-me bem e confortavelmente à vontade. 

Por vezes uma fotografia fica latente durante uns tempos, sem um motivo especial, sabendo apenas que terá um outro valor ao juntar-lhe um texto, quer seja ele meu ou a correspondência de um proveniente de um projecto de que faço parte e do qual me orgulho muito.








A foto que está a servir de mote para este texto é uma das tais. Quem me acompanhava neste dia, terá certamente pensado, ou não, “Está maluquinha, ali o que pode estar a fotografar e mais naquela posição… ora, fotógrafos!”. Na verdade, nem eu sabia muito bem, apenas o instinto sussurrava: acredita.

Dois meses volvidos e a foto encontra o caminho da luz… uma espiral de pensamentos que foram desinquietados por uma música de um grupo espanhol recentemente descoberto e que hoje cravou o estilete desafiante. Os “Vetusta Morla” que cantam Baldosas Amarillas, levaram-me a vaguear um pouco para aqueles pensamentos filosóficos e nada lineares… misturaram-se espirais douradas, a composição áurea, artistas, pintores, escritores, fotógrafos e de repente surge um livro, o seu respectivo filme e as minhas ideias encantadoramente malucas.

Como tudo se quer direitinho com uma explicação, com um alinhamento, com um guião…aviso desde já, tenho pena, mas não uso nada disso. As coisas surgem, acontecem e se há alguém superior a mexer cordelinhos como marionetas que somos, ou então a jogar dados com os nossos destinos, pouco me importa… há uma expressão fantástica, porém é inapropriada para este momento.

Em “O Feiticeiro de Oz” lembro-me que Dorothy tem como ponto de partida uma estrada de tijolos amarelos, uma linha de ouro para uma vida, para um sonho, para um projecto. Não, não vou escrever sobre o que se lê ou se quer ler nas entrelinhas, isso fica para os entendidos, apenas será sobre o que sinto, o que ficou da leitura e do filme e que a foto avivou. 

A espiral de ouro que move e rege a arte na procura da perfeição tem como foco principal uma imagem e consoante a espiral vai sendo desenrolada, desenvolvida, percorrida, todo um leque de itens, objectos, pessoas, aparecem e vão preenchendo essa imagem formando, compondo até a obtenção de um todo final. E se a imagem for uma vida? A nossa própria vida?

Somos um ponto gerado e somos depois colocados num outro a partir do qual crescemos, caminhamos, evoluímos, construímos, estudamos, trabalhamos, vivemos, desconstruímos mitos, realizamos sonhos, ou tentamos realizá-los, criamos laços, estruturamos vivências e depois destruímos, porque não? Ao longo desse percurso que só pode ser nosso, recebemos apoios, incentivos, ferramentas. Contudo, apenas depende de nós o querermos seguir nesse trilho. Podemos ter um mentor, um conselheiro, um amigo, alguém que dá o suporte ao que se pretende fazer, sendo unicamente esse o seu papel. Mostrar possibilidades, conjecturar, espicaçar, desafiar, tudo isso é necessário e importante. Essencial. Mas volto a referir que o caminho deve ser nosso e percorrê-lo far-nos-á chegar onde quisermos.

Desenrolamos a espiral e da mesma forma que Dorothy foi sendo acompanhada e apoiada pelas personagens que foram aparecendo, cada uma representando características humanas e que poderiam ser obstáculos se não soubesse lidar com elas, também nós temos o espantalho, o homem de lata e o leão, isto é, as crenças, os desafectos e o medo.

Precisamos acreditar, o cerne para o objectivo que traçamos está aqui. Acreditar no que queremos, afastar o que de negativo fere e influencia a nossa forma de pensar. Quantas vezes a educação que tivemos é limitadora e, por vezes castradora, no sentido em que nos foram incutidos valores e crenças que ao longo deste percurso de vida foram abandonados e que não mais nos servem, como uma roupa que deixa de servir pelas mais diversas razões. A mentalidade é o nosso ponto fraco mas também aquele que nos faz avançar em força e alargando, não só a espiral que percorremos, como também a maneira de encarar o que nos rodeia com liberdade pensante.

Para progredir, o afecto e o apoio são primordiais, reforçam o objectivo, alimentam-no. Sendo que no campo artístico a perseverança e a criatividade andam lado a lado, mas que em nada resulta se a ausência de afectividade for latente. Tantos sonhos se apagam no som das palavras Isto não é para ti… ou Tu não és capaz! E aqui estão os amigos, os conhecidos, os mentores, aqueles que acreditam e afagam. Aqueles que incentivam e abraçam… com palavras e gestos.

E quando em determinado momento da caminhada é o medo que surge e paralisa. O pânico de falhar. Não há voz que cale a nossa quando revela um medo profundo, emudecido… o medo de sermos julgados, do fracasso. O pânico do poder crítico, arrasador. Medo de quem espreita à esquina aguardando pela queda. A nossa queda na travessia de águas agitadas: Enganados, como estão enganados! Resistência e resiliência. Tropeçar, erguer e seguir!

Espiral percorrida e desenrolada, enriquecida e validada, imperfeita na sua beleza, tem à sua porta as adversidades momentâneas, variantes não controladas que podem fazer perigar o que até aqui foi conseguido. A resistência é palavra de ordem. A generosidade uma benesse, dar sem nada receber e sem nada esperar. De conhecidos. E surpreendente quando vindo de desconhecidos.

E o que somos hoje nesta espiral dourada de vida? A soma de todos os momentos, pessoas, sonhos, essências que permitem afirmar em voz audível e serena: Estou a ser o que quero ser.


(texto de 22.07.2019)

terça-feira, 14 de abril de 2020

Felicidade em rodopio

Rodopio esfuziante na luz que se esvai lentamente.

Rodopio, rodopio na roda de sorrisos...

E sentada, suspendo-me nesse tempo que respiro.







Encantador de sonhos

Contaram-me que há um reino onde mora um encantador de sonhos que se esconde entre os ramos das árvores e que quanto mais o procurares, mais ele foge.

Contaram-me que nesse reino, o encantador muda constantemente de humor: já o sentiram furioso, benévolo, irritado, meigo, destruidor, aterrador, envolvente, triste, desconfiado, silencioso... até melodioso.

Contaram-me que o encantador gosta de abraços. Desconfio. Se ele gosta de abraços, qual a razão para fugir? Estranho.

Saí para um passeio nessa tarde de chuva. Conduzindo sem rumo certo, dei por mim numa estrada de terra batida, ondulada pela passagem constante de máquinas agrícolas; os campos a serem limpos para o repouso do Inverno. Estão para breve esses dias frios. Andei mais alguns metros com cautela. Parei espantada. O céu estava cinzento e tão carregado que a tormenta adivinhava-se. As nuvens corriam velozes, desenfreadas nessa fuga. De repente, um raio de sol escapa e o céu de chumbo explode em cor. Um arco-íris. Saio do carro. A porta escancara-se com violência, tal é a força do vento. Assusto-me ligeiramente. Mas quero admirar o belo momento da natureza e, apertando melhor o casaco, enfrento a sua fúria. O rosto é fustigado quase que com irritação. Os olhos lacrimejam, desprotegidos. Mas consigo assistir a esse fenómeno natural que dura um instante. Sorrio, feliz.
Ao voltar para o carro, percepciono uma evidente desaceleração do vento e noto ao Sul a beleza das nuvens quase feitas de sonhos de algodão. Mais um momento de respiração suspensa. Das árvores antes fustigadas com violência, apenas resta um bailado melodioso de ramos quase despidos. Sinto que há uma curiosa envolvência neste momento, uma serenidade que abraça esta comunhão com a natureza. Como num sonho, fecho os olhos e abro os braços. Sem tempo. Escuto. Murmúrios. Melodias. Sorrio. Sorrio e sinto. Afagos.

Volto para o carro em silêncio, pois sei que há um reino onde mora um encantador de sonhos. Hoje encontrei-o. Deixou-se ver.






(texto de 21.10.2019)

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Desalento

Saiu naquela manhã sem rumo aparente, seguindo durante algum tempo pela calçada. O sol incomodava-a, estava muito forte. Refugiou-se nas sombras das árvores. 
Ao longe contornos retorcidos, gárgulas gritantes. Fechou os olhos, apenas o murmúrio das folhas era superior ao som do seu pensamento. Há quanto tempo não pensava?
Quase adormecida, estremeceu... levantou-se.
Passada incerta, seguiu até lá, indiferente a quem estava, avançou. Mãos atrás das costas, cabisbaixa, foi percorrendo o empedrado na sensação esmagadora do espaço. Reforço da sua pequenez. Apenas a luz dos vitrais atraiu o seu olhar. Arrasta os pés...
A fé dos homens, de ontem e de hoje, circula por ali.
Talvez.
A sua? Há muito que ficou perdida...






(texto de 19.06.2019)

Vag(ue)ar

por máscaras de tempo vago
com máscaras de tempo oco
que escondem olhos mortiços.
Apaga-se a luz
roubada...



domingo, 12 de abril de 2020

Haverá...?

Qual a razão para escrever?
Libertação?
Invenção?
Recriação?
Ou simplesmente porque sim?