sexta-feira, 24 de abril de 2020

Normalidade aos passos


Estou sentada na varanda de olhos fechados. O sol é retemperador depois de tantos dias de chuva. Aquece o corpo. Aconchega a alma. Afugenta o medo. Sacode fantasmas. 
No silêncio de gente que agora reina, apercebo-me do ruído metálico de uma porta a ser aberta. Espreito ligeiramente. É na casa ao lado. 
Saiu para a rua. Os gatos ficam à janela, como é costume. A luz magoa-lhe os olhos, fecha-os com força. O isolamento, aos poucos, rouba-lhe a alegria; disseca-lhe o sorriso transformando essa linha suavemente curva em esgar moribundo. 
A porta fecha-se lentamente atrás de si. Encosta ao batente. Levemente. Clique. 
Avança devagar, pousando primeiro o pé esquerdo no campo minado. Hesita. Parece pensar. Não se costuma dizer que para ter sorte é com o direito? Não há azar. Não está a entrar para algo novo. Está a sair para o trajecto diário de roleta russa. Atravessar, passar e regressar incólume. 
Pisar o mesmo chão da véspera. Palmilhado com cautela. Pisado primeiro levemente e depois com outra firmeza. Avança. Contudo, o medo sempre presente. Uma sombra silenciosa, invisível. 
Repetir as mesmas pegadas e esperar que ninguém tenha reparado nelas. Que não tenha calcorreado o mesmo percurso aparentemente seguro. Sente um sopro arrepiante, é a brisa dessa soalheira manhã de Primavera. 
Afasta-se. Continua sem sorrir... e os gatos permanecem à janela.





(texto de 02.04.2020)


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